As deportações em massa de imigrantes latinos no final de semana tiveram respostas opostas dos presidentes dos países envolvidos. Ao contrário do presidente colombiano, Gustavo Petro, que trocou desafios e ameaças com Donald Trump no X para depois ter de recuar, o presidente Lula não se manifestou e muito menos enfrentou o líder americano publicamente. O governo apenas divulgou uma nota via Itamaraty criticando publicamente o uso de algemas e correntes nos brasileiros a bordo do avião fretado pelos americanos. Nos bastidores, diplomatas também já deixaram claro que a o Ministério das Relações Exteriores não pretende transformar o caso em motivo de disputa.
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As razões para esse silêncio são calculadas para evitar que as rusgas entre Washington e Bogotá se repitam no caso do Brasil. No caso colombiano, Petro anunciou no domingo, pelo X, a proibição da aterrissagem de aeronaves fretadas pelos americanos com cidadãos deportados até que os EUA garantissem condições dignas aos envolvidos no processo. No mesmo dia, Trump anunciou duras sanções econômicas contra Bogotá, incluindo a suspensão de vistos. Petro recuou, mas continuou atacando o presidente dos EUA nas redes sociais.
Já Lula preferiu enviar um pedido de esclarecimentos aos Estados Unidos pelo Itamaraty, cuja redação vem sendo discutida detalhadamente com o chanceler Mauro Vieira. Assim como a Colômbia, que teve de recuar porque tinha mais a perder com as sanções anunciadas por Trump, o Brasil tem interesses econômicos importantes nos Estados Unidos, que são o segundo maior importador de produtos brasileiros. Ambas as nações mantêm ainda um longo histórico de alianças em temas estratégicos.
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Como disse Trump à correspondente da TV Globo em Washington, Raquel Krähenbühl, “eles precisam de nós muito mais do que nós precisamos deles”, em referência ao Brasil e à América Latina.
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Além disso, existe um complicador. Nos quatro anos do governo Joe Biden, houve 4 milhões de deportações, e pelo menos desde 2021 os voos acontecem com brasileiros algemados e acorrentados. O Brasil vem protestando contra isso, mas não obteve nenhum sucesso no passado – e as chances de conseguir algum avanço são ainda menores agora, sob Trump.
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Na Colômbia, Petro está em outra situação. Está com a popularidade em baixa e não pode disputar um segundo mandato nas eleições presidenciais no ano que vem – a reeleição não é permitida pela Constituição do país vizinho. Preferiu usar o episódio para faturar com a própria base, de esquerda.
O cálculo de Lula, porém, é bem diferente. O tom comedido não é de agora. Faz parte da estratégia definida pelo petista e de seus principais auxiliares no comando da diplomacia para lidar com o novo inquilino da Casa Branca.
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O presidente brasileiro pode concorrer à reeleição em 2026. E, caso ganhe, terá de conviver com Trump até janeiro de 2029.
Essa é uma das razões pelas quais, como publicamos no blog na última semana, o assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Celso Amorim, aposta em uma relação de “pragmatismo e respeito mútuo” entre Brasília e Washington, a despeito das diferenças ideológicas.
Um dia após as eleições nos EUA, o petista foi às redes sociais parabenizar Trump pela vitória, desejando-lhe sorte e sucesso. No último dia 20, após a posse do republicano, destacou que a relação entre os dois países é marcada por “trajetória de cooperação, fundamentada no respeito mútuo e em uma amizade histórica” e desejou ao americano um “mandato exitoso”.
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O contexto político interno é fundamental para entender a postura cautelosa do Brasil, em contraste com a da Colômbia.
Depois que as imagens de brasileiros algemados e acorrentados começaram a circular, e vários deles deram depoimentos dizendo ter sido agredidos num voo sem ar-condicionado, o Ministério das Relações Exteriores divulgou uma nota.
No comunicado, disse considerar que o “uso indiscriminado de algemas e correntes” viola o acordo firmado entre Brasil e EUA para a expatriação de cidadãos em situação irregular em solo americano, o que classificou como “inaceitável”.
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O governo brasileiro também determinou que a aeronave não prosseguisse até Belo Horizonte, seu destino final, após um pouso em Manaus por causa de um problema técnico, e os deportados foram encaminhados para a capital de Minas Gerais em um avião da Força Aérea Brasileira.
A atitude do governo brasileiro representa ainda uma inflexão, depois que Lula disse publicamente estar na torcida pela vitória da então vice-presidente Kamala Harris, do Partido Democrata.
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Em entrevista ao canal francês TF1 em outubro passado, afirmou que o nazismo e o fascismo estão voltando a funcionar “com outra cara”.
“Com Kamala Harris é muito mais seguro para a gente fortalecer a democracia. Nós vimos o que foi o presidente Trump (…), aquele ataque ao Capitólio. Uma coisa que era impensável acontecer nos EUA, porque se apresentavam ao mundo como modelo de democracia. E esse modelo ruiu”, declarou na ocasião.
O Brasil é referência mundial quando o tema é imigração e, por consequência, sua política externa nessa questão passa necessariamente pela defesa dos direitos humanos e dos tratados firmados com outros países. O principal dilema para Lula é que, com a reação desproporcional ao protesto da Colômbia, Trump mostrou que não vai aliviar a barra nem para países que são tradicionalmente aliados dos Estados Unidos. Com governantes que já se manifestaram contra ele, não tem por que ser mais suave.