como é o complexo em Mianmar onde brasileiros vítima de tráfico humano são obrigados a aplicar golpes virtuais

Phelipe Ferreira e Luckas Viana se tornaram vítimas de rede de tráfico humano em Mianmar após falsas propostas de emprego — Foto: Reprodução

Vítimas de uma rede de tráfico humano no Sudeste Asiático, os brasileiros Luckas Viana dos Santos, de 31 anos, e Phelipe Ferreira, de 26, encontram-se no KK Park, uma localidade em Mianmar na beira do rio Moei, segundo apurou O GLOBO junto a pessoas próximas da investigação. A área contempla um complexo de “fábricas de golpes” nas quais estrangeiros aliciados por falsas promessas de empregos são obrigados a aplicar fraudes cibernéticas em vítimas ao redor do planeta. Outros brasileiros e estrangeiros resgatados do KK Park já descreveram terem sido submetidos a rotinas de agressões, ameaças de morte e condições precárias.

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Tanto Luckas quanto Phelipe chegaram à Tailândia no segundo semestre deste ano, após receberem pelo Telegram propostas para trabalharem em um cassino e em um call center do país. Hospedados em hotéis de Bangcoc, ambos foram levados em momentos diferentes por um motorista da suposta contratante até o outro lado da fronteira. Os brasileiros não foram avisados que iriam trabalhar em Mianmar, um país governado por uma Junta Militar e mergulhado há anos em um conflito civil.

A fragilidade institucional do país abriu espaço para que grupos criminosos, muitos de origem chinesa, montassem lá suas bases para operações clandestinas. Os bandidos associam-se às facções locais de modo a garantir a continuidade dos negócios ilegais, enquanto aliciam estrangeiros com as falsas propostas de emprego.

Phelipe Ferreira e Luckas Viana se tornaram vítimas de rede de tráfico humano em Mianmar após falsas propostas de emprego — Foto: Reprodução

Em um relatório de outubro, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc) descreveu espaços como o KK Park como sendo “frequentemente” cercados de muros altos com arame farpado e guardados por seguranças armados. Comparados a prisões, essas fábricas de golpes são alugadas ao mesmo tempo para diferentes grupos e operadores criminosos. Em 2023, o Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos apontou que ao menos 120 mil pessoas estariam sendo mantidas nesses espaços em Mianmar. No vizinho Camboja, seriam mais 100 mil vítimas do tráfico humano.

“Trabalhamos 17 horas por dia, sem queixas, sem férias, sem descanso. E se dissermos que queremos ir embora, eles nos dizem que nos venderão ou nos matarão”, relatou Lucas, que é nascido na África Ocidental, à emissora alemã Deustche Walle. “Quem até o meio-dia não conseguisse nenhum novo cliente, ficava sem almoço. Se alguém reparasse que deixou de responder a um chamado, você era espancado, ou forçado a ficar horas de pé”, acrescenta.

Luckas e Phelipe não são os primeiros brasileiros a ficarem presos no KK Park. Em 2022, Patrick Lopes, de 24 anos, passou três meses no complexo, obrigado a aplicar golpes em cidadãos americanos, juntamente a outros nove brasileiros. Nas redes sociais, eles usavam perfis falsos para seduzir as vítimas e extorquir dinheiro. O grupo retornou ao país após uma negociação entre autoridades brasileiras e locais.

– As pessoas precisam saber o que acontece naquele lugar. É muito importante. É impressionante como no Ocidente ninguém sabe sobre aquilo. Depois que o meu caso veio à tona é que as pessoas ouviram falar pela primeira vez daquele inferno. É um lugar que não deveria nem existir. Eu tive muita sorte, mas nem todo mundo tem – contou Patrick ao GLOBO em 2022.

– Comia tripas, lesmas, dormi em chão duro, passei fome e frio – revelou Nathalia Belchior Munhoz, que também estava no grupo.

Crescimento impulsionado pela pandemia

Em março deste ano, o secretário-geral da Interpol, Jurgen Stock, declarou que o dinheiro movimentado por esses grupos pode chegar a US$ 3 trilhões. Ainda segundo ele, a pandemia da Covid-19 acelerou o crescimento dessas redes criminosas no Sudeste Asiático. “Impulsionados pelo anonimato online, inspirados por novos modelos de negócios e acelerados pela Covid, esses grupos do crime organizado estão agora trabalhando em uma escala que era inimaginável há uma década”, declarou Stock, em uma coletiva de imprensa.

Uma comparação entre imagens de satélites de 2019 e 2024 da área do KK Park, que constam no relatório da ONU publicado em outubro, mostram a expansão do complexo nos últimos anos. Veja abaixo:

Imagens de satélite mostram crescimento do KK Park entre 2019 e 2024 — Foto: Reprodução
Imagens de satélite mostram crescimento do KK Park entre 2019 e 2024 — Foto: Reprodução

Uma investigação da Deustche Welle em janeiro encontrou conexões entre o KK Park e o chinês Wan Kuok-koi, o Dente Partido. Apontado como um das lideranças da tríade 14k, que tem Hong Kong como base, ele é alvo de sanções do governo americano desde 2020. A organização criminosa foi descrita pelo Tesouro americano como “uma das maiores organizações criminosas organizadas chinesas no mundo”. Kuok-koi nega envolvimento com o crime organizado e se posiciona publicamente como um empresário, com investimentos em cassinos na Ásia.

A emissora alemã analisou o fluxo de carteiras de criptomoedas usadas para coletar o dinheiro das vítimas. Uma delas pertencia ao empresário chinês Wang Yi Cheng, que atuava como vice-presidente de uma associação empresarial sediada na Tailândia. Segundo a Deustche Welle, a organização teria ligações com a rede de Wan Kuok-koi.

Alertas de embaixadas brasileiras

A Embaixada do Brasil em Yangon, capital de Mianmar, afirma ser notificada de aliciamentos de brasileiros para trabalhos análogos a escravidão desde setembro de 2022. Em geral, os alvos são seduzidos por vagas de emprego supostamente no setor financeiro da Tailândia, com salários competitivos, comissões e passagens aéreas.

Os brasileiros são levados a assinar cláusulas de confidencialidade antes de serem transportados até Mianmar. Eles, então, têm os passaportes retidos e são submetidos a longas jornadas de trabalho, privação parcial da liberdade de movimento e possíveis abusos físicos.

A Tailândia também é alvo de alertas do gênero pelo governo brasileiro. Em hostels, vagas de emprego nos arredores de Bangkok são oferecidas à brasileiros. No entanto, após aceitarem o trabalho, as vítimas são levadas por grupos armados até Mianmar, onde atuam para empresas fraudulentas e em condições precárias.

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