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Por José Geraldo Coutonão Blog do Cinema fazer IMS
O mínimo que se pode dizer do filme mais disputado da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo é que ele faz jus às expectativas. Estou falando de Ainda estou aquide Walter Salles, que teve todas as suas sessões – inclusive as da imprensa – superlotadas. O filme entra em cartaz nos cinemas no próximo dia 7.
A esta altura todos sabem que se trata da história de Eunice Paiva (Fernanda Torres/ Fernanda Montenegro), viúva do advogado e deputado cassado Rubens Paiva (Selton Mello), morto sob tortura pela ditadura militar no início de 1971. A base para o roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega premiado em Veneza foi o livro homônimo de memórias de Marcelo Rubens Paiva, único filho homem do casal.
Os acertos do filme começam com a sensível e precisa reconstituição de época. Diferentemente do que costuma ocorrer, alcança-se aqui uma naturalidade quase documental tanto nas cenas de praia como nas das ruas, trafegadas por fuscas e Opalas típicos do início dos anos 1970. Pode parecer um detalhe trivial, mas a textura e a vibração das imagens (num trabalho conjunto de fotografia e direção de arte) ajudam a atrair o espectador para o cerne da obra, que é a tragédia de uma mulher, de uma família, de um país.
Uma casa, um país
No centro de tudo está uma casa, a ampla residência da família Paiva, de frente para o mar do Leblon. Esse espaço confortável, caloroso e aconchegante ocupado pelo casal Eunice/Rubens e seus cinco filhos é invadido e conspurcado abruptamente quando policiais à paisana vêm buscar o ex-deputado e vigiar o resto da família. Desde Aquáriode Kleber Mendonça Filho, não se via uma residência ocupar tão plenamente o papel de personagem.
Quando a invasão acontece, lá pela meia-hora de filme, o espectador já é íntimo do ambiente, a ponto de se sentir também invadido e violentado. Aquela é uma família singular, mas é também todas as famílias.
A capacidade de Walter Salles de expor o que há de universal numa trajetória particular, atestada em seus melhores trabalhos, faz com que o drama dos Paiva funcione como uma metáfora, ou antes metonímia, do drama do país. E quem conduz esse drama, como uma discreta e impávida heroína de tragédia grega, é evidentemente Eunice Paiva, vivida com brilho extraordinário por Fernanda Torres e, já na velhice, por sua mãe, Fernanda Montenegro, que dispensa comentários.
Se a espinha dorsal do filme é a narrativa realista clássica, que Walter Salles domina com segurança, algumas sacadas vão além do meramente funcional, atingindo uma poesia audiovisual notável.
Os exemplos começam na primeira cena: Eunice está boiando deitada de costas num mar sereno quando surge no horizonte um helicóptero que atravessa o céu, trazendo um mau presságio que ficará pulsando, latente, mesmo durante os momentos sorridentes da família. Do mesmo modo, o destino do último dente de leite da filha caçula adquire um significado pungente, iluminando as relações entre pais e filhos.
Uma cena breve merece menção especial. Eunice, numa das doze noites que passou na prisão, praticamente incomunicável, ouve outro prisioneiro cantar, na cela ao lado, o samba clássico “Agoniza mas não morre”, de Nelson Sargento. Naquela escuridão – literal e simbólica – esse canto torto assume uma dimensão de resistência quase metafísica.
Haveria muitas outras coisas a ressaltar – do uso criativo e eficiente das imagens em super-8 captadas pela filha mais velha (Valentina Herszage) à variada trilha musical, passando pelo elenco coeso –, mas estamos em meio à maior mostra de cinema do país e há outros títulos que não podem passar batidos. Vamos a alguns deles.
Destaques da Mostra
Falando com rios (Irã/Reino Unido), de Mohsen Makhmalbaf. Um diálogo entre um iraniano e um afegão, sobre imagens de filmes do próprio diretor e de suas filhas Samira e Hana, expõe toda a tragédia histórica dos dois países outrora irmãos, oprimidos ao longo dos séculos pelo fanatismo religioso e pela ganância predatória das grandes potências.
Grande passeio (Portugal/Itália/França), de Miguel Gomes. Em 1918, na então Birmânia, um funcionário da coroa britânica embarca em uma viagem sem rumo pelo Oriente para fugir da noiva chegada da Inglaterra. Com uma liberdade desconcertante e um humor peculiar, o cineasta português mistura os tempos para abordar o embate cultural e o colonialismo em países como China, Coreia, Vietnã, Tailândia e Japão.
Através do fluxo (Coreia do Sul), de Hong Sang-soo. Uma professora de uma faculdade de artes convida o tio – um ator/diretor de teatro “cancelado” e semiesquecido – para dirigir um esquete com suas alunas. O título cabe para todo o cinema de Sang-soo, feito pelo fluir do tempo, em que o trivial e o essencial se misturam de modo indissociável.
Os enforcados (Brasil), de Fernando Coimbra. Misto de thriller policial e sátira política corrosiva em que um rico bicheiro (Irandhir Santos) e sua esposa (Leandra Leal) procuram sobreviver e levar vantagem num Rio conflagrado pela guerra envolvendo criminosos, milícias, escolas de samba, policiais corruptos e políticos vendidos.
Mário de Andrade, o turista aprendiz (Brasil), de Murilo Salles. A partir das anotações de Mário de Andrade no livro póstumo O turista aprendizo filme refaz, com extrema liberdade de invenção e humor, a viagem do escritor (Rodrigo Mercadante) pela Amazônia em 1927. Uma reflexão criativa sobre o modernismo e sua relação com o país profundo.
Oito cartões-postais da utopia (Romênia), de Radu Jude. Um dos filmes mais inusitados da Mostra. Obra de montagem que traça a história romena dos últimos cinquenta anos só com os absurdos e impagáveis comerciais de TV produzidos no país no período.
Ernest Cole: achados e perdidos (França/Eua), de Raoul Peck. Documentário pungente sobre o fotógrafo sul-africano Ernest Cole, que documentou nos anos 1960 a opressão brutal do apartheid e teve que se exilar nos EUA, onde registrou também as comunidades negras oprimidas, antes de sucumbir à depressão e viver nas ruas.
Serra das almas (Brasil), de Lirio Ferreira. Em fuga da polícia depois de um roubo de joias, matadores de aluguel a serviço de um senador corrupto sequestram duas jornalistas de TV e se refugiam com elas numa casa isolada no sertão. O filme explora com eficiência a tensão crescente entre esse pequeno grupo, revelando fraturas sociais ancestrais renovadas e aguçadas em nossa época.